Em praticamente todas as civilizações que existiram antes de nós, os bovinos, devido à utilidade e docilidade natural desses animais, sempre conviveram muito próximos dos humanos, prestando variados serviços_ as vacas nos dando, amorosamente, o precioso alimento, o leite, e o boi empregando sua força nos trabalhos do campo, principalmente na aração para o cultivo dos cereais e, também, na tração de cargas.
A revolução industrial, marco exponencial no destino e no comportamento da sociedade humana, afetou significativamente essa harmônica relação entre humanos e bovinos. Ao entrarem no campo os tratores, o trabalho dos bois tornou-se obsoleto. Apesar do ganho em produtividade imediatista do trabalho mecanizado, hoje em dia já sentimos os efeitos negativos da mecanização do campo, por ser um recurso artificial que agride a natureza. O solo fica compactado, exposto ao sol e chuva, com a inevitável perda dos nutrientes e microorganismos do solo. O uso dos bois é completamente natural, preservando a riqueza orgânica do solo.
Em nossa sociedade moderna, hedonista e consumista, a demanda de leite, ingrediente obrigatório para confecção de inúmeras variedades de guloseimas_ sorvetinhos, iogurtes, chocolates, docinhos, etc._ vem aumentando dia após dia. Para se produzir mais e mais o cobiçado leite, as vacas são forçadas a procriar. As bezerras fêmeas são automaticamente fadadas a tornarem-se futuras fábricas de leite. Devem ser nutridas com rações especiais para produzir quantidades crescentes de leite gordo. Quanto aos bezerros machos, sem serem ocupados no campo, qual será então seu destino?
Criou-se, então, uma cultura da matança de animais, em que todos os bezerros machos são invariavelmente enviados ao matadouro para suprir a poderosíssima indústria da carne. Essa é a cultura vigente que se arraigou na sociedade humana. Devido ao marketing onipresente, as pessoas ficam completamente condicionadas à dieta carnívora. Aprecia-se o sabor de cadáveres de animais, sem se dar conta do abominável que isso representa. Já se nasce com essa informação no DNA. Especialistas em saúde e nutrição acreditam piamente que para se viver saudavelmente não se pode prescindir da dieta carnívora. A carne de animais adquiriu um status especial no contexto gastronômico, mesmo sabendo-se e experimentando-se as dificuldades na digestão e na evacuação que a ingestão de carne acarreta. Principalmente nas grandes cidades, as churrascarias, templos refinados do prazer da língua, exalam, para o desfrute dos usuários, o apreciado odor de carne torrada, bem característico dos crematórios a céu aberto na Índia.
A relação dos humanos com os bovinos, hoje em dia, é baseada exclusivamente no lucro. Em imensos latifúndios, centenas de milhares de bois permanecem, por vários meses, impassíveis nos campos de pastagens, comendo e engordando o máximo que podem até adquirir as arrobas de peso que, por sua vez, vão denunciar sua própria condenação à morte. Três pessoas são suficientes para cuidar centenas e centenas de bois em vastas extensões de terra. O lucro é fácil, pois o produto é cobiçado. Isso é o que podemos considerar como economia da preguiça.
“A carne é imprescindível para livrar as populações carentes da fome”, dizem os supostos especialistas. Mentira. Puro engano. O fato é que a indústria da carne está contribuindo para a devastação ambiental do planeta e, ao invés de aliviar a fome dos necessitados, é canalizada ao desfrute da língua dos que podem pagar seu preço.
É interessante que existem muitas campanhas para proteger baleias, golfinhos, tartarugas, araras, mico-leão, etc., mas quem está protegendo os bovinos? Esses são explorados com uma tremenda insensibilidade com a única finalidade de satisfazer a língua dos humanos. Não levam uma vida natural. As vacas são programadas para serem máquinas de leite e geradoras de crias. O ciclo de vida fica assim reduzido devido ao stress e condições anti-naturais. Quando o corpo delas não agüenta mais o ritmo imposto a elas e a produção de leite declina, elas, sem receberem o mínimo de misericórdia e reconhecimento pelo bem que esses seres fizeram, são, por sua vez, mandadas ao matadouro como se fossem objetos insensíveis. Os bezerros machos então não têm nenhuma chance de morrer de velhice. Muitos, na tenra idade, são condenados a serem baby-beef, que é uma das maiores atrocidades cometidas por humanos. Isso tudo é considerado normal pela massa geral constituída de pessoas condicionadas, desinformadas e alienadas.
Para atender a demanda sempre crescente de carne, a população dos bovinos vem aumentando tremendamente, muito além do limite que a Natureza pode suportar. Certa classe de ambientalistas acusa os bovinos de serem os maiores responsáveis pelo aquecimento global. Estudos científicos detectaram que o gás metano gerado da fermentação que ocorre no estomago e nos intestinos dos ruminantes e conseqüente flatulência seria o maior causador do efeito estufa do planeta, devido a sua capacidade de retenção do calor, muitas vezes superior, inclusive, ao gás carbônico. Com esse dado, tratam de demonizar e estigmatizar esses animais, com sendo os culpados pelas mudanças climáticas do planeta. Trata-se, no entanto, de uma injustiça para com esses inocentes animais.
O mesmo ocorre com os eucaliptos. “Desertificam a terra”, é o que normalmente se escuta. Consideremos: Que culpa tem o pobre do eucalipto? É, sem dúvida, uma árvore tão piedosa e útil: dá boa madeira, boa lenha, sombra, beleza paisagística, essência medicinal e aromática e, ainda por cima, é melífera. Para nos oferecer tanta utilidade, os eucaliptos precisam de água e nutrientes, que buscam no subsolo. O que acontece é que, ao verem as possibilidades de lucro que os eucaliptos oferecem, principalmente para a indústria do papel, os empresários gananciosos ocupam grande extensões de terra com a monocultura do eucalipto. Já está provado que qualquer monocultura acarreta em exaustão do solo, principalmente tratando-se da monocultura de árvores de grande porte. De forma similar, os bovinos são forçados a procriar, pois quanto mais carne e leite mais lucro. Em nosso país, o maior exportador de carne do mundo, a população de bovinos supera a dos humanos! Isso é uma agressão contra a Natureza. Decerto provoca desequilíbrios ambientais, pois é uma situação artificial.
A proteção dos bovinos encerra um alto teor de conteúdo ético. Em terminologia védica essa virtude é qualificada com ahimsa, não violência. Os animais, em especial os mamíferos, sofrem de dor e stress exatamente como os humanos. Para uma cultura de paz, deve-se evitar toda e qualquer violência desnecessária. Na Natureza, a violência inevitavelmente já está sempre presente. Por exemplo, ao caminharmos, muitas vezes estamos esmagando algumas formigas e insetos sem darmos conta disso. Na selva e entre os insetos, um animal é violentamente morto e usado como alimento para seu predador natural. Contudo entre seres humanos, com o status de seres racionais e civilizados, a violência deve ser controlada. Violência desnecessária é inadmissível. Violência gera violência. Certamente a violência sempre crescente nesse mundo tão conturbado regrediria se a sociedade humana passasse a lidar com os bovinos dentro dos princípios de ahimsa.
“Em nossa fazenda, todos os animais têm nomes. São tratados como membros da comunidade”, disse eu uma vez num grande encontro de ambientalistas e pessoas dedicadas ao cultivo de práticas de desenvolvimento sustentável. Tais palavras tão simples, sem nenhuma intenção demagógica, tiveram um impacto na platéia. Fui ovacionado. Em Goura Vrindávana, em nosso programa de proteção dos bovinos todos os dados dos animais são devidamente registrados: nome, data do nascimento, filiação, etc. Eles nunca serão mandados para o matadouro. A morte natural está garantida. Durante a vida, eles prestam algum serviço, fornecendo leite e força, mas ao chegarem a terceira idade estarão seguros e tranqüilos tendo a sua disposição um campo de pastagem natural e água pura em abundância. A proteção dos bovinos é um paradigma de vida que se contrapõe radicalmente à mentalidade vigente na qual o lucro justifica a exploração irrestrita da Natureza.
Dentre todas as culturas que floresceram nesse planeta, a cultura védica milenar da Índia é a que mais valorizou o convívio dos humanos com os bovinos. O leite da vaca é chamado de “religião líquida”. Da nata do leite se faz a manteiga; da manteiga se faz o gui, que é a manteiga clarificada; e o gui é o elemento essencial em todos os rituais e cerimônias religiosas.
“Os indianos adoram a vaca”, dizem gratuitamente pessoas desinformadas influenciadas por algum sub-jornalismo. Tal idéia foi difundida pelos ingleses que, ao dominarem a Índia por trezentos anos, tentaram por todos meios de desmoralizar a cultura e o conhecimento dos Vedas. O fato é que a vaca merece respeito. A vaca, por nos dar amorosamente o leite, é considerada na cultura védica como uma de nossas mães. Vejam só o status que ela tem nessa cultura milenar! A explicação é que se, por exemplo, uma mãe morre ao dar a luz a uma criança, o pai poderá salvar essa criança tendo uma vaca por perto para alimentá-la com o leite. Por sua vez, o touro na cultura védica simboliza o dharma, as virtudes divinas do ser humano.
Uma coisa que diferencia os bovinos de outros animais, e até mesmo dos humanos, é que seu excremento não é nojento como os demais. Ele é útil e pode ser manuseado. Tem, inclusive, qualidades anticéticas. Os utensílios da cozinha podem, inclusive, ser untados com o esterco fresco para se purificar. No campo, é comum espalhar o esterco fresco pelo chão dos pátios, pois, depois de secos, dão a sensação de limpeza e afastam os insetos. O esterco seco ao sol, confeccionado em “bolachas”, é considerado o melhor combustível para se cozinhar. Mesmo hoje em dia, isso é muito comum nas zonas rurais da Índia.
É um ato nobre proteger os bovinos. Em Goura Vrindávana, ao contrário da pecuária convencional em que tratam de afastar precocemente os bezerros de suas mães, as vacas amamentam por meses seus bezerros e bezerrinhas. Podemos ver que, mesmo entre esses animais inferiores aos humanos, o sentimento materno está muito vivo e presente. Quem, em sã consciência, ousaria argumentar que animais não têm alma? Certamente que não possuem o mecanismo cerebral dos humanos que possibilita o exercício da razão e sentimentos refinados, mas, em sua essência e em forma rudimentar, tanto sentimentos como consciência estão presentes nos animais. E sentimentos e consciência são os sintomas da alma. Não podemos aceitar o direito de matar esses animais para satisfazer a língua simplesmente com o falso argumento de que “animais não têm alma”.
Outra consideração muito significativa, especialmente aos devotos de Krishna, é o fato registrado nas escrituras védicas de que o Senhor Krishna, em Sua infância e adolescência em Vrindávana, era um vaqueirinho. Krishna é também conhecido como Govinda, “o querido das vacas”, e Gopala, “o vaqueirinho transcendental.
Um programa de proteção dos bovinos não pode ser focado na produção comercial de leite, pois tal prática inevitavelmente cai na exploração desses animais. Nossa relação com eles deve ser de proteção. A vaca libera amorosamente o leite, cuja quantidade supera em muito a capacidade do bezerro de se alimentar. Todos os dias, os bezerros têm a sua disposição uma quantidade de leite materno necessária para o crescimento saudável. E sobra sempre uma boa quantidade para os humanos, para confeccionar manteiga, gui, iogurte, queijo e outros produtos lácteos.
É afirmado nos escritos védicos que o leite tem a capacidade de alimentar as células da região do cérebro responsáveis pela percepção espiritual. O leite supre também a vitamina B12, essencial ao organismo. Deve-se, entretanto, usar o leite e os produtos lácteos com parcimônia. O exagero pode acarretar distúrbios no processo digestivo e aumento de muco no corpo.
Uma coisa deve ser bem entendida por pessoas que, sensíveis à exploração dos animais para satisfação da língua, adotam a dieta vegana, isenta de produtos animais: o leite e os produtos lácteos derivados de animais sob o regime de proteção são verdadeiramente veganos. Não existe violência no processo de extrair o leite e no trato dos animais. Essa não é meramente nossa opinião. Isso tem sido comprovado por pessoas que realmente conhecem o conceito dessa postura diante da vida.
Como se pode deduzir pelo o que foi exposto aqui, o programa de “Proteção dos Bovinos” não é economicamente sustentável. Não se tem objetivo comercial. É como um sacerdócio ou uma missão. Sendo assim, é um programa que depende de doações e da boa vontade das pessoas sensíveis. As doações podem ser periódicas ou esporádicas. Várias pessoas fazem doações mensais regulares, que nos possibilita comprar certos complementos alimentares, como farelo de trigo, milho, sal marinho, etc. e, também, medicamentos tanto alopáticos, para o caso de ferimentos e bicheiras, quanto homeopáticos, para uso interno. Outra possibilidade também é manter uma relação permanente com um determinado animal adotando-o desde seu nascimento. Em suma, qualquer doação feita de coração para esse programa tão nobre trará certamente recompensas kármicas auspiciosas para a vida da pessoa.
Purushatraya Swami